Plano Diretor (parte 1): uma ilusão?
/Neste momento em que a Secretaria de Desenvolvimento Urbano de São Paulo está realizando a revisão do Plano Diretor (PD) da cidade, muita coisa pode ser discutida. A começar pela própria utilidade dos planos diretores. Como já mostrou o urbanista Flávio Villaça (ver o livro "A ilusão do Plano Diretor"), planos diretores no Brasil tendem a servir apenas como uma cortina de fumaça tecnicista para escamotear as práticas arcaicas de (não) planejamento que servem, com ou sem plano diretor, exclusivamente aos interesses dos grupos dominantes. Os "processos participativos" são muitas vezes puro jogo de cena, e muito pouco do que os planos estabelecem se aplica. Na verdade, grande parte dos instrumentos urbanísticos ali contidos são autoaplicáveis e poderiam até ser utilizados pelo poder público independentemente do plano diretor.
Planos Diretores são muitas vezes vistos como "o" grande instrumento para frear a voracidade do mercado imobiliário que, no Brasil, atuando sem nenhum controle, vem de fato desfigurando as cidades, ou melhor, os bairros formais das cidades. Porém, se é verdade que planos diretores podem estabelecer princípios e algumas regras, o que vai realmente disciplinar o mercado é a Lei de Zoneamento, que formalmente corre em paralelo ao PD (e que também deve ser urgentemente revista). Aliás, é ruim associar um PD unicamente à tarefa do controle do mercado, pois seu papel mais interessante seria o de definir "como" uma cidade pode e deve crescer, ou seja, quais os princípios políticos que devem nortear as dinâmicas econômicas, os investimentos em infraestrutura, o modelo de mobilidade, por exemplo.
Muitos dos problemas de São Paulo, como a pendularidade dos fluxos de deslocamento decorrente de uma superconcentração espacial das atividades econômicas, a heterogeneidade dos investimentos em transporte e vias de tráfego (concentrados quase que somente no eixo Sudoeste), a segregação socioespacial indecente, decorrem de um modelo político segregacionista e elitista, que se reproduz apoiando-se justamente na falta de (ou da vontade explícita de não fazer) planejamento, na ausência de diretrizes a serem seguidas a longo prazo e independentemente dos governos, que, estas sim, caberiam em um PD.
Há muito tempo atrás, quando se iniciava a discussão sobre os "instrumentos urbanísticos" capazes de promover a democratização das cidades, escrevi que planos diretores eram um pacto necessário entre os diferentes agentes econômicos, políticos e sociais que atuam na cidade, de tal forma a estabelecer regras para um crescimento que atendesse a todos os interesses envolvidos. Era uma época em que, em plena redemocratização, ainda se imaginava (ingenuamente?) a possibilidade de implementar no Brasil um poder público forte e defensor dos interesses verdadeiramente públicos. Hoje, por mais que tenhamos avanços e alguns governos mais alentadores - como o atual em SP - devemos reconhecer que aquilo era um sonho que ainda não se realizou. No jogo de poder brasileiro, não há ainda pacto possível, pois os mais poderosos, os que ganham e muito com a apropriação do "público" para si, prescindem de pactos, e pouco se importam com eles. Não é à toa, portanto, que a mensagem mais sólida das manifestações que vivemos foi justamente a de que as políticas públicas brasileiras (tomando o exemplo das de transporte), corroídas pela corrupção, o clientelismo, a ineficiência protegida e o favorecimento ao lucro privado, são um desastre. Pois, na verdade, não são bem políticas "públicas".
O atual plano diretor de São Paulo, de 2002, que está sendo revisado, é um bom exemplo dos efeitos inócuos que os planos podem ter. A questão começa pelo fato de que, no Brasil, é e será impossível fazer planejamento enquanto não houver mecanismos que assegurem a perenidade das políticas públicas, blindando-as das mudanças de governos. No nosso país, sistematicamente, a primeira coisa que um novo governo faz, com raras exceções, é destruir por completo as políticas do governo anterior. O plano diretor de 2002, feito após muito trabalho e esforço na gestão Marta Suplicy, trazia as esperanças de impulsionar a aplicação na cidade dos "novos" instrumentos para promover a reforma urbana democrática que haviam sido regulamentados no Estatuto da Cidade, em 2001. Entretanto, ele foi engavetado nos oitos anos de gestão que se seguiram.
A coisa é tão perversa que quanto melhor tiver sido a política, mais radicalmente será aniquilada, já que por ser boa, é uma marca positiva incômoda do governo anterior. Perguntem por que, por exemplo, encerrou-se a implantação dos corredores de ônibus na gestão passada, inclusive o já projetado corredor da Celso Garcia, iniciadas com sucesso pela gestão de Marta Suplicy. Ou então o que ocorreu com a gestão da única experiência de habitações sociais com locação feita em São Paulo recentemente, no Parque do Gato, devidamente deixada ao abandono. Quanto aos técnicos das prefeituras, aqueles que são zelosos da coisa pública e não corrompidos, se se empenharem em alguma gestão em política na qual acreditem e por ventura o governo mudar, terão de amargar tal ousadia por anos e anos, na geladeira do quinto subsolo de alguma repartição inútil.
Mas não foi só isso que matou o Plano Diretor de 2002. Ele também sofreu das próprias vicissitudes. Excessivamente complexo, tecnicista e ambicioso, otimista demais quanto à sua perenidade em um contexto político adverso, o plano, embora fosse lei, acabou sendo, como disse, engavetado pela gestão seguinte, mostrando o quanto no Brasil leis só valem quando se quer. As boas intenções nele contidas ficaram no papel, quando não foram usurpadas para fins escusos. Tome-se o exemplo da outorga onerosa e dos estoques de potencial construtivo, mecanismos que permitiriam arrecadar com a venda para o mercado imobiliário do direito de construir acima do limite mínimo, dentro de estoques estabelecidos para cada região. Tornaram-se um poço obscuro de corrupção, sem que ninguém pudesse saber exatamente quanto e onde se permitia construir na cidade, os estoques tornando-se moeda de troca em esquemas que ficaram famosos sob o comando de um certo Aref. Além disso, deram às grandes construtoras o privilégio de criar reserva de mercado, comprando de antemão quase todos os estoques disponíveis.
As Zonas Especiais de Interesse Social, que deveriam garantir a produção de habitação social em algumas áreas, foram um outro (triste) exemplo. Embora delimitadas no PD, na sua maioria ou ficaram congeladas (as do centro da cidade) face ao pavor do mercado em "misturar" habitação social, ou foram simplesmente acaparadas pelo mercado (as ZEIS em terrenos vazios), graças a brechas na lei. A repórter Vanessa Corrêa mostrou (clique aqui para ler) lançamentos imobiliários milionários escandalosos em ZEIS, áreas que deveriam ser reservadas à oferta de moradia para os mais pobres.
Outros instrumentos, como o IPTU Progressivo no tempo, que deveria permitir o combate à subutilização de imóveis na cidade, sequer chegaram a ser regulamentados, em oito anos de gestão.
O problema é que, enquanto isso, o mercado imobiliário mostrava que, definitivamente, não precisava de nenhum plano diretor para continuar a capitanear a (péssima) urbanização da cidade. Quando necessário (para esses fins), mudanças sutis na Lei de Zoneamento foram promovidas, e bairros inteiros, como a Pompéia ou a Moóca, foram sendo transfigurados. Alavancados por projetos nunca previstos no plano diretor, como candidaturas às olimpíadas (e nisto cabe à crítica também à gestão Marta) , copa do mundo, exposições universais, planos para a Cantareira, e assim por diante, somavam-se as tentativas de implementar mega-projetos capazes de dinamizar o chamado "urbanismo de mercado". Exceção à regra foram as Operações Urbanas, estas sim presentes no Plano, mas coincidentemente o único instrumento cujo perfil é o de favorecimento aos interesses imobiliários. Não por coincidência, neste caso, "estranhamente", o Plano foi sim seguido.
Então, se tudo pode ser feito de forma independente de planos, se é possível tirar deles apenas o que interessa a determinados interesses, se os instrumentos mais complexos podem ser facilmente transformados em fonte de corrupção por gestores inescrupulosos, por que, então refazermos o mesmo erro, e ainda mantermos a crença em Planos Diretores?
A questão é que não se pode, como diz a expressão, jogar o bebê com a água do banho. Planos Diretores são deturpados não por existirem, mas porque a relação de forças e o sistema político no Brasil ainda devem amadurecer, no caminho da ética, e muito. Em um cenário ideal de democracia, Planos Diretores podem e devem ter o papel de direcionar a maneira como as cidades crescem, garantindo que sejam "boas" cidades para todos seus habitantes. Seria isso possível? Por isso a importância das manifestações de junho, que resgatam a exigência pelo "público", são tão importantes.
Agora, de fato seria um engano refazer os erros do passado. E recomeçar a elaborar um plano cheio de instrumentos complexos, mas pouco efetivos e que nunca serão de fato aplicados. A ocasião talvez seja a de se pensar em um plano simples, mas efetivamente radical. Que não se perca em tecnicismos, e que coloque com firmeza os princípios de uma urbanização democrática e socialmente justa. Ou seja, que aponte claramente as prioridades: habitação para todos, infraestrutura básica, inversão dos investimentos favorecendo as regiões pobres, prioridade total ao transporte público de massa e, sobretudo, dar lugar para os pobres na cidade "que funciona". Este é sem dúvida o ponto mais difícil. Pois toca numa questão central, a da propriedade da terra. É disso que falarei na segunda parte desta postagem.